Pesquisa


Oportunidades

Meus livros

BannerFans.com

Frases Eternas

Filósofos & Poetas

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Filosofia Poética nos versos de Drummond





Receita de leitura

''''Chega mais perto e
contempla as palavras,
cada uma
tem mil faces secretas
sob a face neutra
e te pergunta, sem
interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que
lhe deres:
Trouxeste a chave?''''


Legado

Que lembrança darei ao país que me deu

tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?

Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu

minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

E mereço esperar mais do que os outros, eu?

Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.

Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,

a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,

uma voz matinal palpitando na bruma

e que arranque de alguém o mais secreto espinho.

De tudo quanto foi meu passo caprichoso

na vida, restará, pois o resto se esfuma,

uma pedra que havia em meio do caminho.


* * *


Entrevista solta

Qual a mais bela palavra da língua portuguesa?
- Hoje é glicínia. Apesar de leguminosa.
- E amanhã?
- Cada dia escolho uma, conforme o tempo.
- A mais feia?
- Não digo. Podem escutar.
- Acredita em Deus?
- Ele é que não acredita em mim.
- E em Saldanha?
- O cisne ou o outro?
- O outro.
- Até Deus acredita nele.
- Então papamos a taça?
- Na raça.
- E se não paparmos?
- Eu não sou daqui, sou de Niterói.
- Mas tudo é Brasil.
- Para o Imposto de Renda, sim. Para o Imposto de Serviço, são muitos.
- Já fez a declaração?
- Quem faz por mim é um computador de terceira geração.
- Tão complicado assim?
- Ao contrário: a mais simples.
- Parabéns por ter renda.
- Mas eu não tenho. Imagine se tivesse.
- E a Apolo-9?
- O maravilhoso ficou barato. Quero ver aqueles três é guiando fusca no Rio.
- Vai melhorar. Olhe os viadutos.
- Estou olhando. Não vejo é pedestre. Já será efeito da pílula?
- O Papa é contra.
- O Papa nem sempre é Papa.
- Acha que China e U.R.S.S. irão à guerra?
- Não. A guerra é sempre feita entre um que quer e outro que não quer brigar.

Quando os dois querem, verificam que estão de acordo, e detestam-se em paz.
- E a crise do teatro?
- Cada um leia a peça em casa.
- Os atores ficarão sem trabalho?
- Escreverão peças para leitura em casa.
- Os teatros estão fechando.
- Mas as cervejarias estão abrindo.
- E o Festival do Filme?
- Genial. Vai mostrar aquilo que não se vê mais nos cinemas: filmes.
- Esquadrão da Morte?
- Calma. Se é para liquidar com os bandidos, acabará fuzilando a si mesmo.
- É pela eleição por distrito?
- Sou radical. Por bairro.
- Seu prato predileto?
- Vontade de comer.
- Cor?
- A do vinho no copo; da luz no mar; dos olhos inteligentes.
- Sua divisa?
- A do meu apartamento. Em condomínio.
- Pretende reservar passagem para a Lua?
- Não aprecio lugares muito freqüentados.
- Que acha do gênero humano?
- Podia ser pior.
- E dos animais?
- Em geral têm muita paciência conosco.
- Que mensagem envia aos telespectadores?
- Que mantenham desligados seus receptores.
- Qual, o senhor é impossível!
- Também acho.


* * *


Canção amiga

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.
Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.
Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.
Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.
Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.







Sou o Velho Cansado






Sou o Velho Cansado
que adora o seu cansaço e não o quer
submisso ao vão comércio da palavra.
Poupem-me, por favor ou por desprezo,
se não querem poupar-me por amor.

Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

A Máquina do Mundo

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Caso do Vestido

Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.




Nossa mãe, dizei depressa

que vestido é esse vestido.


Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.




O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.




Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!




Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.




Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.




E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,




se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou,




chorou no prato de carne,
bebeu, brigou, me bateu,




me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,




mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou.




Dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,




beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.




Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,




me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,




que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...




Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.




Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio. Disfarcemos.




Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.




Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.




E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.




Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.




Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,




só pra lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.




Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.




Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.




O seu vestido de renda,
de colo mui devassado,




mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.




Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei... disse que sim.




Sai pensando na morte,
mas a morte não chegava.




Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio,




visitei vossos parentes,
não comia, não falava,




tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.




Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,




perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,




minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,




minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.




Vosso pais sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.




Um dia a dona soberba
me aparece já sem nada,




pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.




Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,




que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido,




última peça de luxo
que guardei como lembrança




daquele dia de cobra,
da maior humilhação.




Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.




Mas então ele enjoado
confessou que só gostava




de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,





fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,




me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,




me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,




bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,




dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.




Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito




de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.




Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.




Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?




quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?




quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?




quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?




Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.




Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.




Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada




vosso pai aparecia.
Olhou pra mim em silêncio,




mal reparou no vestido
e disse apenas: — Mulher,




põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,




comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,




comia meio de lado
e nem estava mais velho.





O barulho da comida
na boca, me acalentava,




me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito




de que tudo foi um sonho,
vestido não há... nem nada.




Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.





Desaparecimento de Luísa Porto




Pede-se a quem souber
do paradeiro de Luísa Porto
avise sua residência
À Rua Santos Óleos, 48.
Previna urgente
solitária mãe enferma
entrevada ha longos anos
erma de seus cuidados.
Pede-se a quem avistar
Luísa Porto, de 37 anos,
que apareça, que escreva,
que mande dizer
onde está.
Suplica-se ao repórter-amador,
ao caixeiro, ao mata-mosquitos, ao transeunte,
a qualquer do povo e da classe média,
até mesmo aos senhores ricos,
que tenham pena de mãe aflita
e lhe restituam a filha volatilizada
ou pelo menos dêem informações.
É alta, magra,
morena, rosto penugento, dentes alvos,
sinal de nascença junto ao olho esquerdo,
levemente estrábica.
Vestidinho simples. Óculos.
Sumida há três meses.
Mãe entrevada chamando.
Roga-se ao povo caritativo desta cidade
que tome em consideração um caso de família
digno de simpatia especial.
Luísa é de bom gênio, correta, meiga, trabalhadora, religiosa.
Foi fazer compras na feira da praça.
Não voltou.
Levava pouco dinheiro na bolsa.
(Procurem Luísa.)
De ordinário não se demorava.
(Procurem Luísa.)
Namorado isso não tinha.
(Procurem. Procurem.)
Faz tanta falta.
Se todavia não a encontrarem
nem por isso deixem de procurar
com obstinação e confiança que Deus sempre recompensa
e talvez encontrem.
Mãe, viúva pobre, não perde a esperança.
Luísa ia pouco a cidade
e aqui no bairro é onde melhor pode ser pesquisada.
Sua melhor amiga, depois da mãe enferma,
É Rita Santana, costureira, moça desimpedida.
a qual não da noticia nenhuma,
limitando-se a responder: Não sei.
O que não deixa de ser esquisito.
Somem tantas pessoas anualmente
numa cidade como o Rio de janeiro
que talvez Luísa Porto jamais seja encontrada.
Uma vez, em 1898,
ou 9,
sumiu o próprio chefe de polícia
que saíra a tarde para uma volta no Largo do Rocio
e até hoje.
A mãe de Luísa, então jovem, leu no Diário Mercantil,
ficou pasma.
O jornal embrulhado na memória.
Mal sabia ela que o casamento curto, a viuvez,
a pobreza, a paralisia, o queixume
seriam, na vida, seu lote
e que sua única filha, afável posto que estrábica,
se diluiria sem explicação.
Pela ultima vez e em nome de Deus
todo-poderoso e cheio de misericórdia
procurem a moça, procurem
essa que se chama Luísa Porto
e é sem namorado.
Esqueçam a luta política,
ponham de lado preocupações comerciais,
percam um pouco de tempo indagando,
inquirindo, remexendo.
Não se arrependerão. Não
há gratificação maior do que o sorriso
de mãe em festa
e a paz intima
conseqüente às boas e desinteressadas ações,
puro orvalho da alma.
Não me venham dizer que Luísa suicidou-se.
O santo lume da fé
ardeu sempre em sua alma
pertence a Deus e a Teresinha do Menino Jesus.
Ela não se matou.
Procurem-na.
Tampouco foi vítima de desastre que a polícia ignora
e os jornais não deram.
Está viva para consolo de uma entrevada
e triunfo geral do amor materno
filial e do próximo.
Nada de insinuações quanto à moça casta
e que não tinha, não tinha namorado.
Algo de extraordinário terá acontecido,
terremoto, chegada de rei.
As ruas mudaram de rumo,
para que demore tanto, é noite.
Mas há de voltar, espontânea
ou trazida por mão benigna,
O olhar desviado e terno, canção.
A qualquer hora do dia ou da noite
quem a encontrar avise a Rua Santos Óleos.
Não tem telefone.
Tem uma empregada velha que apanha o recado
e tomará providencias.
Mas
se acharem que a sorte dos povos é mais importante
e que não devemos atentar nas dores individuais,
se fecharem ouvidos a este apelo de campainha,
não faz mal, insultem a mãe de Luísa,
virem a pagina:
Deus terá compaixão da abandonada e da ausente,
erguerá a enferma, e os membros perclusos
já se desatam em forma de busca.
Deus lhe dirá :
Vai,
procura tua filha, beija-a e fecha-a para sempre em teu coração.
Ou talvez não seja preciso esse favor divino.
A mãe de Luísa ( somos pecadores )
sabe-se indigna de tamanha graça.
E resta a espera, que sempre é um dom.
Sim, os extraviados um dia regressam
— ou nunca, ou pode ser, ou ontem.
E de pensar realizamos.
Quer apenas sua filhinha
que numa tarde remota de Cachoeiro
acabou de nascer e cheira a leite,
a cólica, a lágrima.
Já não interessa a descrição do corpo
nem esta, perdoem, fotografia,
disfarces de realidade mais intensa
e que anúncio algum proverá.
Cessem pesquisas, rádios, calai-vos·
Calma de flores abrindo
no canteiro azul
onde desabrocham seios e uma forma de virgem
intata nos tempos.
E de sentir compreendemos.
Já não adianta procurar
minha querida filha Luísa
que enquanto vagueio pelas cinzas do mundo
com inúteis pés fixados, enquanto sofro
e sofrendo me solto e me recomponho
e torno a viver e ando,
está inerte
gravada no centro da estrela invisível
Amor.






Pombo-Correio




Os garotos da Rua Noel Rosa
onde um talo de samba viça no calçamento,
viram o pombo-correio cansado
confuso
aproximar-se em vôo baixo.
Tão baixo voava: mais raso
que os sonhos municipais de cada um.
Seria o Exército em manobras
ou simplesmente
trazia recados de ai! amor
à namorada do tenente em Aldeia Campista?
E voando e baixando entrançou-se
entre folhas e galhos de fícus:
era um papagaio de papel,
estrelinha presa, suspiro
metade ainda no peito, outra metade
no ar.
Antes que o ferissem,
pois o carinho dos pequenos ainda é mais desastrado
que o dos homens
e o dos homens costuma ser mortal
uma senhora o salva
tomando-o no berço das mãos
e brandamente alisa-lhe
a medrosa plumagem azulcinza
cinza de fundos neutros de Mondrian
azul de abril pensando maio.
3235-58-Brasil
dizia o anel na perninha direita.
Mensagem não havia nenhuma
ou a perdera o mensageiro
como se perdem os maiores segredos de Estado
que graças a isto se tornam invioláveis,
ou o grito de paixão abafado
pela buzina dos ônibus.
Como o correio (às vezes) esquece cartas
teria o pombo esquecido
a razão de seu vôo?
Ou sua razão seria apenas voar
baixinho sem mensagem como a gente
vai todos os dias à cidade
e somente algum minuto em cada vida
se sente repleto de eternidade, ansioso
por transmitir a outros sua fortuna?
Era um pombo assustado
perdido
e há perguntas na Rua Noel Rosa
e em toda parte sem resposta.
Pelo quê a senhora o confiou
ao senhor Manuel Duarte, que passava
para ser devolvido com urgência
ao destino dos pombos militares
que não é um destino.








Mostrando toda sua genialidade, o poeta faz de uma notícia de jornal uma linda poesia, com versos inspiradíssimos. Extraído do livro "Carlos Drummond de Andrade - Obra Completa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 2002, pág. 483.







Papai Noel às Avessas




Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.





Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças
Papai entrou compenetrado.




Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.




Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa do aperto.




Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.





Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.




Este poema foi publicado no livro "Alguma Poesia", Editora Pindorama, em1930, primeiro livro do autor. Texto extraído de "Nova Reunião", Livraria José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1983, pág. 24.





Poemas de Dezembro




Em 1963 Lázaro Barreto, como muitos outros, mandou para Carlos Drummond de Andrade um exemplar de seu livro "Contos do Apocalipse Clube", já que estava dando seus primeiros passos no mundo das letras. Tocado pela situação de Barreto, que à época residia em uma pequena cidade mineira, Marilândia, Drummond, bem a seu estilo, lhe escreve comentando a obra e começa uma troca de correspondências com o iniciante que durou mais de 20 anos. Os dois jamais se encontraram pessoalmente, mas o poeta nunca deixou de remeter suas opiniões sobre os escritos de seu conterrâneo e, principalmente, alguns poemas que permaneceram inéditos até há pouco. Sua gentileza chegou ao ponto de enviar um poema onde comemorava o nascimento da primeira filha de Barreto, mesmo errando seu nome (Ana Paula):




Lázaro e Inês
Agora três

Nada comum
Os três agora
Formam só um
A toda hora
Arte de amar
Lição de aula
Aberta em flor
Maria Paula.




Abaixo, alguns dos "Poemas de Dezembro" agora revelados:




Procuro uma alegria
uma mala vazia
do final de ano
e eis que tenho na mão
- flor do cotidiano -
é vôo de um pássaro
é uma canção.




(Dezembro de 1968)




Uma vez mais se constrói
a aérea casa da esperança
nela reluzem alfaias
de sonho e de amor: aliança.




(Dezembro de 1973)





Fazer da areia, terra e água uma canção
Depois, moldar de vento a flauta

que há de espalhar esta canção
Por fim tecer de amor lábios e dedos
que a flauta animarão
E a flauta, sem nada mais que puro som
envolverá o sonho da canção
por todo o sempre, neste mundo




(Dezembro de 1981)





Quem me acode à cabeça e ao coração
neste fim de ano, entre alegria e dor?
Que sonho, que mistério, que oração?
Amor.





(Dezembro de 1985)





Para encerrar, uma receita de Ano Novo dada pelo poeta:





Receita de Ano Novo




Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.





A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.
Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora -- murmura a bunda -- esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar
A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente
A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem.
Ondas batendo
numa praia infinita.Lá vai sorrindo a bunda.
Vai feliz na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.
A bunda é a bunda, rebunda.





in O Amor Natural, Carlos Drummond de Andrade













A máquina do mundo













E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco o simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo."
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mão pensas.







Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.


A verdade dividida

A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E era preciso optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.


Combate

Nem eu posso com Deus nem pode ele comigo.
Essa peleja é vã, essa luta no escuro
entre mim e seu nome.
Não me persegue Deus no dia claro.
Arma, à noite, emboscadas.
Enredo-me, debato-me, invectivo
e me liberto, escalavrado.
De manhã, à hora do café, sou eu quem desafia.
Volta-me as costas, sequer me escuta,
e o dia não é creditado a nenhum dos contendores.
Deus golpeia à traição.
Também uso para com ele táticas covardes.
E o vencedor (se vencedor houver) não sentirá prazer
pela vitória equívoca.

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.


O homem; as viagens

O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.
Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte — ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro — diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto — é isto?
idem
idem
idem.
O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.
Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado.
Restam outros sistemas fora
do solar a col-
onizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.

Inocentes do Leblon

Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe imigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.

Antigamente

ANTIGAMENTE, as moças chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e muito prendadas. Não faziam anos: completavam primaveras, em geral dezoito. Os janotas, mesmo não sendo rapagões, faziam-lhes pé-de-alferes, arrastando a asa, mas ficavam longos meses debaixo do balaio. E se levavam tábua, o remédio era tirar o cavalo da chuva e ir pregar em outra freguesia. As pessoas, quando corriam, antigamente, era para tirar o pai da forca e não caíam de cavalo magro. Algumas jogavam verde para colher maduro, e sabiam com quantos paus se faz uma canoa. O que não impedia que, nesse entrementes, esse ou aquele embarcasse em canoa furada. Encontravam alguém que lhes passasse a manta e azulava, dando às de vila-diogo. Os mais idosos, depois da janta, faziam o quilo, saindo para tomar fresca; e também tomavam cautela de não apanhar sereno. Os mais jovens, esses iam ao animatógrafo, e mais tarde ao cinematógrafo, chupando balas de altéia. Ou sonhavam em andar de aeroplano; os quais, de pouco siso, se metiam em camisa de onze varas, e até em calças pardas; não admira que dessem com os burros n’água.
HAVIA OS QUE tomaram chá em criança, e, ao visitarem família da maior consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus respeitos a alguém, o portador garantia-lhes: “Farei presente.” Outros, ao cruzarem com um sacerdote, tiravam o chapéu, exclamando: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”, ao que o Reverendíssimo correspondia: “Para sempre seja louvado.” E os eruditos, se alguém espirrava — sinal de defluxo — eram impelidos a exortar: “Dominus tecum”. Embora sem saber da missa a metade, os presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao vigário, e com isso metiam a mão em cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a tramontana. A pessoa cheia de melindres ficava sentida com a desfeita que lhe faziam, quando, por exemplo, insinuavam que seu filho era artioso. Verdade seja que às vezes os meninos eram mesmo encapetados; chegavam a pitar escondido, atrás da igreja. As meninas, não: verdadeiros cromos, umas tetéias.
ANTIGAMENTE, certos tipos faziam negócios e ficavam a ver navios; outros eram pegados com a boca na botija, contavam tudo tintim por tintim e iam comer o pão que o diabo amassou, lá onde Judas perdeu as botas. Uns raros amarravam cachorro com lingüiça. E alguns ouviam cantar o galo, mas não sabiam onde. As famílias faziam sortimento na venda, tinham conta no carniceiro e arrematavam qualquer quitanda que passasse à porta, desde que o moleque do tabuleiro, quase sempre um cabrito, não tivesse catinga. Acolhiam com satisfação a visita do cometa, que, andando por ceca e meca, trazia novidades de baixo, ou seja, da Corte do Rio de Janeiro. Ele vinha dar dois dedos de prosa e deixar de presente ao dono da casa um canivete roscofe. As donzelas punham carmim e chegavam à sacada para vê-lo apear do macho faceiro. Infelizmente, alguns eram mais do que velhacos: eram grandessíssimos tratantes.
ACONTECIA o indivíduo apanhar constipação; ficando perrengue, mandava o próprio chamar o doutor e, depois, ir à botica para aviar a receita, de cápsulas ou pílulas fedorentas. Doença nefasta era a phtysica, feia era o gálico. Antigamente, os sobrados tinham assombrações, os meninos lombrigas, asthma os gatos, os homens portavam ceroulas, botinas e capa-de-goma, a casimira tinha de ser superior e mesmo X.P.T.O. London, não havia fotógrafos, mas retratistas, e os cristãos não morriam: descansavam.
MAS TUDO ISSO era antigamente, isto é, outrora.

Família


DISTINÇÃO

O Pai se escreve sempre com P grande
em letras de respeito e de tremor
se é Pai da gente. E Mãe, com M grande.
O Pai é imenso. A Mãe, pouco menor.
Com ela, sim, me entendo bem melhor:
Mãe é muito mais fácil de enganar.
(Razão, eu sei, de mais aberto amor.)

O BEIJO
Mandamento
: beijar a mão do Pai
às 7 da manhã, antes do café
e pedir a bênção
e tornar a pedir
na hora de dormir.
Mandamento: beijar
a mão divino-humana
que empunha a rédea universal
e determina o futuro.
Se não beijar, o dia
não há de ser o dia prometido,
a festa multimaginada,
mas a queda — tibum — no precipício
de jacarés e crimes
que espreita, goela escancarada.
Olha o caso de Nô.
Cresce demais, vira estudante
de altas letras, no Rio de outras normas.
Volta, não beija o Pai
na mão. A mão procura
a boca, dá-lhe um tapa,
maneira dura de beijar
o filho que não beija a mão sequiosa
de carinho, gravado
nas tábuas da lei mineira de família.
Que é isso? Nô sangra na alma,
a boca dói que dói
é lá dentro, na alma. O dia, a noite,
a fuga para onde? Foge Nô
no breu do não-saber, sem rumo, foge
de si mesmo, consigo,
e não tem saída
a não ser voltar,
voltar sem chamado,
para junto da mão
que espera seu beijo
na mais pura exigência
de terroramor.
Olha o caso de Nô.
7 da manhã.
Antes do café.

REVOLTA
Não quero este pão — Quinquim atira
o pão no chão.
A mesa vira vidro, transparente
de emoção.
Quem ousa fazer isso em pleno almoço?
Pede castigo
o pão jogado ao chão.
O Castigador decreta:
Agora de joelhos você vai
apanhar este pão.
Vai trazer um barbante e amarrar
o pão no seu pescoço
e vai ficar o dia todo
de pão no peito, expiação.
Quinquim perdeu a força da revolta.
Apanha o pão, amarra o pão
no pescoço humilhado
e ostenta o dia todo
a condecoração.

O seu santo nome

Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.

Drummond traduz Beatles


OB-LA-DI, OB-LA-DA
(John Lennon - Paul McCartney)

Desmond has a barrow in the market place
Molly is the singer in a band
Desmond says to Molly
girl I like your face
And Molly says this as she takes him by the hand
Ob-la-di ob-la-da life goes on bra
La-la how the life goes on
Ob-la-di ob-la-da life goes on bra
Lala how the life goes on
Desmond takes a trolley to the jewellers store
Buys a twenty carat golden ring
Takes it back to Molly waiting at the door
And as he gives it to her she begins to sing
In a couple of years they have built
A home sweet home
With a couple of kids running in the yard
Of Desmond and Molly Jones
Happy ever after in the market place
Desmond lets the children lend a hand
Molly stays at home and does her pretty face
And in the evening she still sings it with the band
Happy ever after in the market place
Molly lets the children lend a hand
Desmond stays at home and does his pretty face
And in the evening she still sings it with the band
And if you want some fun
Take Obladi oblada.



OBLADI, OBLADÁ
(tradução: Carlos Drummond de Andrade)


Desmond tem um carrinho na Praça do Mercado.
Molly vocaliza num conjunto.
Desmond diz a Molly: Por teu rosto sou vidrado
Molly diz-lhe: O quê? e pega-lhe na mão.


Obladi, obladá, a vida continua: olá,
olalá, como a vida continua!
Obladi, obladá, a vida continua... Olá,
olalá, como a vida continua!
Desmond toma o ônibus, vai à joalheria
compra anel de ouro de ofuscar
e leva-o a Molly, que espera junto à porta.
De anel no dedo, eis Molly a cantar.
Em um par de anos terão construído
um lar bacana doce que nem cana.
Um par de garotos corre pelo pátio
desse casal unido.
Olha Desmond feliz na Praça do Mercado.
Ao lado, os molequinhos ajudando.
Molly ficou em casa se enfeitando
e à noite ainda canta no conjunto.
Olha Molly feliz na Praça do Mercado.
Ao lado, os molequinhos ajudando.
Desmond ficou em casa se enfeitando
e à noite ela ainda canta no conjunto.

E se querem se divertir, obladi, obladá!

PIGGIES
(George Harrison)
Have you seen the little piggies
Crawling in the dirt
And for all the little piggies
Life is getting worse
Always having dirt to play around in
Have you seen the bigger piggies
In their starched white shirts?
You will find the bigger piggies
Stirring up the dirt
Always have clean shirts to play around in
In their styes with all their backing
They don't care what goes on around
In their eyes there's something lacking
What they need's a damn good whacking
Everywhere there's lots of piggies
Living piggy lives
You can see them out for dinner
With their piggy wives
Clutching forks and knives to eat their bacon


PORCOS
(tradução: Carlos Drummond de Andrade)

Viste os porquinhos
rebolando na imundície?
Para todos os porquinhos
a vida está cada vez mais difícil
e brincam sempre na sujeira por aí.
Viste os mais taludos porquinhos
em suas engomadas, alvíssimas camisas?
Olha os mais taludos porquinhos
em algazarra na imundície
com camisas alvíssimas a folgar por aí.
Em seus chiqueiros, plenamente protegidos,
ao que vai por aí nem ligam.
Nos olhos deles falta uma coisinha:
precisam mesmo é de suma porcaria.
Por toda parte há muitos porquinhos
vivendo suas porquinhas vidas.
Podes vê-los para o jantar saindo
com suas porquinhas mulherinhas
de garfo e faquinha para comer presunto.

WHY DON'T WE DO IT IN THE ROAD?
(John Lennon - Paul McCartney)

Why don't we do it in the road?
No one will be watching us
Why don't we do it in the road?


E POR QUE NÃO AQUI NA ESTRADA?
(tradução: Carlos Drummond de Andrade)

E por que não aqui na estrada?
Não há ninguém para ver nada
E por que não aqui na estrada?


Antigamente (II)

ANTIGAMENTE, os pirralhos dobravam a língua diante dos pais, e se um se esquecia de arear os dentes antes de cair nos braços de Morfeu, era capaz de entrar no couro. Não devia também se esquecer de lavar os pés, sem tugir nem mugir. Nada de bater na cacunda do padrinho, nem de debicar os mais velhos, pois levava tunda. Ainda cedinho, aguava as plantas, ia ao corte e logo voltava aos penates. Não ficava mangando na rua nem escapulia do mestre, mesmo que não entendesse patavina da instrução moral e cívica. O verdadeiro smart calçava botina de botões para comparecer todo liró ao copo-d’água, se bem que no convescote apenas lambiscasse, para evitar flatos. Os bilontras é que eram um precipício, jogando com pau de dois bicos, pelo que carecia muita cautela e caldo de galinha. O melhor era pôr as barbas de molho diante de treteiro de topete: depois de fintar e engambelar os coiós, e antes que se pusesse tudo em pratos limpos, ele abria o arco. O diacho eram os filhos da Candinha: quem somava a candongas acabava na rua da amargura, lá encontrando, encafifada, muita gente na embira, que não tinha nem para matar o bicho; por exemplo, o mão-de-defunto.
BOM ERA TER as costas quentes, dar as cartas com a faca e o queijo na mão; melhor ainda, ter uma caixinha de pós de perlimpimpim, pois isso evitava de levar a lata, ficar na pindaíba ou espichar a canela antes que Deus fosse servido. Qualquer um acabava enjerizado se lhe chegavam a urtiga no nariz, ou se o faziam de gato-sapato. Mas que regalo, receber de graça, no dia-de-reis, um capado! Ganhar vidro de cheiro marca barbante, isso não: a mocinha dava o cavaco. Às vezes, sem tirte nem guarte, aparecia o doutor pomada, todo cheio de nove horas; ia-se ver, debaixo de tanta farofa era um doutor da mula ruça, um pé-rapado, que espiga! E a moçoila, que começava a nutrir xodó por ele, que estava mesmo de rabicho, caía das nuvens. Quem queria lá fazer papel pança? Daí se perder as estribeiras por uma tutaméia, um alcaide que o caixeiro nos impingia, dando de pinga um cascão de goiabada.
EM COMPENSAÇÃO, viver não era sangria desatada, e até o Chico vir de baixo vosmecê podia provar uma abrideira que era o suco, ficando na chuva mesmo com bom tempo. Não sendo pexote, e soltando arame, que vida supimpa a do degas! Macacos me mordam se estou pregando peta. E os tipos que havia: o pau-para-toda-obra, o vira-casaca (este cuspia no prato em que comera), o testa-de-ferro, o sabe-com-quem-está falando, o sangue-de-barata, o Dr. Fiado que morreu ontem, o zé-povinho, o biltre, o peralvilho, o salta-pocinhas, o alferes, a polaca, o passador de nota falsa, o mequetrefe, o safardana, o maria-vai-com-as-outras... Depois de mil peripécias, assim ou assado, todo mundo acabava mesmo batendo com o rabo na cerca, ou, simplesmente, a bota, sem saber como descalçá-la.
MAS ATÉ AÍ morreu Neves, e não foi no Dia de São Nunca de Tarde: foi vítima de pertinaz enfermidade que zombou de todos os recursos da ciência, e acreditam que a família nem sequer botou fumo no chapéu?

Negros

NEGRA

A negra para tudo
a negra para todos
a negra para capinar plantar
regar
colher carregar empilhar no paiol
ensacar
lavar passar remendar costurar cozinhar
rachar lenha
limpar a bunda dos nhozinhos
trepar.
A negra para tudo
nada que não seja tudo tudo tudo
até o minuto de
(único trabalho para seu proveito exclusivo)
morrer.

HOMEM LIVRE
Atanásio
nasceu com seis dedos em cada mão.
Cortaram-lhe os excedentes.
Cortassem mais dois, seria o mesmo
admirável oficial de sapateiro, exímio seleiro.
Lombilho que ele faz, quem mais faria?
Tem prática de animais, grande ferreiro.
Sendo tanta coisa, nasce escravo,
o que não é bom para Atanásio nem para ninguém.
Então foge do Rio Doce.
Vai parar, homem livre, no Seminário de Diamantina,
onde é cozinheiro, ótimo sempre, esse Atanásio.
Meu parente Manuel Chassim não se conforma.
Bota anúncio no Jequitinhonha, explicadinho:
Duzentos mil-réis a quem prender crioulo Atanásio.
Mas quem vai prender homem de tantas qualidades?


Eterno

E como ficou chato ser moderno.
Agora serei eterno.
Eterno! Eterno!
O Padre Eterno,
a vida eterna,
o fogo eterno.
(Le silence éternel de ces espaces infinis m'effraie.)

O que é eterno, Yayá Lindinha?
Ingrato! é o amor que te tenho.

Eternalidade eternite eternaltivamente
eternuávamos
eternissíssimo
A cada instante se criam novas categorias do eterno.
Eterna é a flor que se fana
se soube florir
é o menino recém-nascido
antes que lhe dêem nome
e lhe comuniquem o sentimento do efêmero
é o gesto de enlaçar e beijar
na visita do amor às almas
eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo
mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma
[força o resgata
é minha mãe em mim que a estou pensando
de tanto que a perdi de não pensá-la
é o que se pensa em nós se estamos loucos
é tudo que passou, porque passou
é tudo que não passa, pois não houve
eternas as palavras, eternos os pensamentos; e
[passageiras as obras.
Eterno, mas até quando? é esse marulho em nós de um
[mar profundo.
Naufragamos sem praia; e na solidão dos botos
[afundamos.
É tentação a vertigem; e também a pirueta dos ébrios.
Eternos! Eternos, miseravelmente.
O relógio no pulso é nosso confidente.
Mas eu não quero ser senão eterno.
Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma
[essência
ou nem isso.
E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde
[pousou uma sombra
e que não fique o chão nem fique a sombra
mas que a precisão urgente de ser eterno bóie como uma
[esponja no caos
e entre oceanos de nada
gere um ritmo.



José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

Drummond traduz Beatles (II)

I WILL
John Lennon - Paul McCartney

Who knows how long I've loved you,
You know I love you still,
Will I wait a lonely lifetime,
If you want me to I will.
For if I ever saw you,
I didn't catch your name,
But it never really mattered,
I will always feel the same.
Love you forever and forever,
Love you with all my heart;
Love you whenever we're together,
Love you when we're apart.
And when at last I find you,
Your song will fill the air,
Sing it loud so I can hear you,
Make it easy to be near you,
For the things you do endear you to me,
oh, you know I will.
I will.



FAREI TUDO
Tradução: Carlos Drummond de Andrade

Desde sempre te amei
e bem sabes que ainda te amo.
Devo esperar toda a vida?
Se quiseres — esperarei.
Se alguma vez te vi
nem sequer teu nome escutei.
Mas isso não faz diferença:
sempre a mesma coisa sentirei.
Eu te amarei por todo o sempre, sempre,
desde a raiz do meu coração
e te amarei quando estivermos juntos
e te amarei na solidão.
Quando finalmente te encontrar
tua canção envolverá o espaço.
Canta bem alto, para eu escutar.
Tudo farei para te dar o braço
pois tudo em ti me prende a mim.
Bem sabes que farei tudo
tudo farei.


BLACKBIRD
John Lennon - Paul McCartney

Blackbird singing in the dead of night
Take these broken wings and learn to fly
All your life
You were only waiting for this moment to arise.
Blackbird singing in the dead of night
Take these sunken eyes and learn to see
All your life
You were only waiting for this moment to be free.
Blackbird fly, Blackbird fly
Into the light of the dark black night.
Blackbird fly, Blackbird fly
Into the light of the dark black night.
Blackbird singing in the dead of night
Take these broken wings and learn to fly
All your life
You were only waiting for this moment to arise
You were only waiting for this moment to arise
You were only waiting for this moment to arise.

MELRO

Tradução: Carlos Drummond de Andrade


Melro que cantas no morrer da noite,

com estas asas rotas aprende teu vôo


A vida toda


esperaste a hora e a vez de teu vôo.


Melro que cantas no morrer da noite,


com estes olhos fundos aprende a ver


A vida toda


esperaste a hora e a vez de ser livre.


Voa, melro, voa, melro,


para o clarão da escura noite.


Voa, melro, voa, melro,


para o clarão da escura noite.


Melro que cantas no morrer da noite,


com estas asas rotas aprende teu vôo


A vida toda


esperaste a hora e a vez de teu vôo


esperaste a hora e a vez de teu vôo


esperaste a hora e a vez de teu vôo.



HAPPINESS IS A WARM GUN

John Lennon - Paul McCartney

She's not a girl who misses much

Do do do do do do do do


She's well acquainted with the touch of the velvet hand


Like a lizard on a window pane.


The man in the crowd with the multicoloured mirrors


On his hobnail boots


Lying with his eyes while his hands are busy


Working overtime


A soap impression of his wife which he ate


And donated to the National Trust.


I need a fix 'cause I'm going down


Down to the bits that I left uptown


I need a fix cause I'm going down


Mother Superior jump the gun


Mother Superior jump the gun


Mother Superior jump the gun


Mother Superior jump the gun.


Happiness is a warm gun


Happiness is a warm gun


When I hold you in my arms


And I feel my finger on your trigger


I know no one can do me no harm


Because happiness is a warm gun


Yes it is.



A FELICIDADE É UM REVÓLVER QUENTE

Tradução: Carlos Drummond de Andrade


Até que essa garota não erra muito

oi oi oi oi oi oi oi oi

Acostumou-se ao roçar da mão-de-veludo

como lagartixa na vidraça.

O cara da multidão, com espelhos multicores

sobre seus sapatões ferrados

descansa os olhos enquanto as mãos se ocupam

no trabalho de horas extraordinárias

com a saponácea impressão de sua mulher

que ele papou e doou ao Depósito Público.

Preciso de justa-causa porque vou rolando para baixo

para baixo, para os pedaços que deixei na cidade-alta,

preciso de justa-causa porque vou rolando para baixo


Madre Superiora dispara o revólver

Madre Superiora dispara o revólver


Madre Superiora dispara o revólver


A felicidade é um revólver quente


A felicidade é um revólver quente


Quando te pego nos braços


e meus dedos sinto em teu gatilho,


ninguém mais pode com a gente,


pois a felicidade é um revólver quente


lá isso é.



Canção amiga


Eu preparo uma canção

em que minha mãe se reconheça,


todas as mães se reconheçam,


e que fale como dois olhos.


Caminho por uma rua


que passa em muitos países.


Se não me vêem, eu vejo


e saúdo velhos amigos.


Eu distribuo um segredo


como quem ama ou sorri.


No jeito mais natural


dois carinhos se procuram.


Minha vida, nossas vidas


formam um só diamante.


Aprendi novas palavras


e tornei outras mais belas.


Eu preparo uma canção


que faça acordar os homens


e adormecer as crianças.


O novo homem

O homem será feito

em laboratório.


Será tão perfeito


como no antigório.


Rirá como gente,


beberá cerveja


deliciadamente.


Caçará narceja


e bicho do mato.


Jogará no bicho,


tirará retrato


com o maior capricho.


Usará bermuda


e gola roulée.


Queimará arruda


indo ao canjerê,


e do não-objeto


fará escultura.


Será neoconcreto


se houver censura.


Ganhará dinheiro


e muitos diplomas,


fino cavalheiro


em noventa idiomas.


Chegará a Marte


em seu cavalinho


de ir a toda parte


mesmo sem caminho.


O homem será feito


em laboratório,


muito mais perfeito


do que no antigório.


Dispensa-se amor,


ternura ou desejo.


Seja como flor


(até num bocejo)


salta da retorta


um senhor garoto.


Vai abrindo a porta


com riso maroto:


"Nove meses, eu?


Nem nove minutos."


Quem já conheceu


melhores produtos?


A dor não preside


sua gestação.


Seu nascer elide


o sonho e a aflição.


Nascerá bonito?


Corpo bem talhado?


Claro: não é mito,


é planificado.


Nele, tudo exato,


medido, bem-posto:


o justo formato,


o standard do rosto.


Duzentos modelos,


todos atraentes.


(Escolher, ao vê-los,


nossos descendentes.)


Quer um sábio? Peça.


Ministro? Encomende.


Uma ficha impressa


a todos atende.


Perdão: acabou-se


a época dos pais.


Quem comia doce


já não come mais.


Não chame de filho


este ser diverso


que pisa o ladrilho


de outro universo.


Sua independência


é total: sem marca


de família, vence


a lei do patriarca.


Liberto da herança


de sangue ou de afeto,


desconhece a aliança


de avô com seu neto.


Pai: macromolécula;


mãe: tubo de ensaio


e, per omnia secula,


livre, papagaio,


sem memória e sexo,


feliz, por que não?


pois rompeu o nexo


da velha Criação,


eis que o homem feito


em laboratório


sem qualquer defeito


como no antigório,


acabou com o Homem.


Bem feito.

Hotel Toffolo

E vieram dizer-nos que não havia jantar.

Como se não houvesse outras fomes


e outros alimentos.


Como se a cidade não nos servisse o seu pão


de nuvens.


Não, hoteleiro, nosso repasto é interior


e só pretendemos a mesa.


Comeríamos a mesa, se no-lo ordenassem as Escrituras.


Tudo se come, tudo se comunica,


tudo, no coração, é ceia.


O constante diálogo

Há tantos diálogos

Diálogo com o ser amado


o semelhante


o diferente


o indiferente


o oposto


o adversário


o surdo-mudo


o possesso


o irracional


o vegetal


o mineral


o inominado


Diálogo consigo mesmo


com a noite


os astros


os mortos


as idéias


o sonho


o passado


o mais que futuro


Escolhe teu diálogo


e


tua melhor palavra


ou


teu melhor silêncio


Mesmo no silêncio e com o silêncio


dialogamos.


O medo

A Antonio Candido

"Porque há para todos nós um problema sério...


Este problema é o do medo."


(Antonio Candido, Plataforma de Uma Geração)

Em verdade temos medo.

Nascemos escuro.


As existências são poucas:


Carteiro, ditador, soldado.


Nosso destino, incompleto.


E fomos educados para o medo.


Cheiramos flores de medo.


Vestimos panos de medo.


De medo, vermelhos rios


vadeamos.


Somos apenas uns homens


e a natureza traiu-nos.


Há as árvores, as fábricas,


Doenças galopantes, fomes.


Refugiamo-nos no amor,


este célebre sentimento,


e o amor faltou: chovia,


ventava, fazia frio em São Paulo.


Fazia frio em São Paulo...


Nevava.


O medo, com sua capa,


nos dissimula e nos berça.


Fiquei com medo de ti,


meu companheiro moreno,


De nós, de vós: e de tudo.


Estou com medo da honra.


Assim nos criam burgueses,


Nosso caminho: traçado.


Por que morrer em conjunto?


E se todos nós vivêssemos?


Vem, harmonia do medo,


vem, ó terror das estradas,


susto na noite, receio


de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos,

lentos poderes do láudano.


Até a canção medrosa


se parte, se transe e cala-se.


Faremos casas de medo,


duros tijolos de medo,


medrosos caules, repuxos,


ruas só de medo e calma.


E com asas de prudência,


com resplendores covardes,


atingiremos o cimo


de nossa cauta subida.


O medo, com sua física,


tanto produz: carcereiros,


edifícios, escritores,


este poema; outras vidas.


Tenhamos o maior pavor,


Os mais velhos compreendem.


O medo cristalizou-os.


Estátuas sábias, adeus.


Adeus: vamos para a frente,


recuando de olhos acesos.


Nossos filhos tão felizes...


Fiéis herdeiros do medo,


eles povoam a cidade.


Depois da cidade, o mundo.


Depois do mundo, as estrelas,


dançando o baile do medo.


Drummond em italiano



MÃOS DADAS

Não
serei o poeta de um mundo caduco.


Também não cantarei o mundo futuro.


Estou preso à vida e olho meus companheiros.


Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.


Entre eles, considero a enorme realidade.


O presente é tão grande, não nos afastemos.


Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.


Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,


não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da


[ janela,


não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,


não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.


O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os


[ homens presentes,


a vida presente.



In Sentimento do Mundo

José
Olympio, 1940


© Graña Drummond



Mani allacciate


Tradução: Vera Lúcia de Oliveira

Non
sarò il poeta di un mondo caduco.

Non canterò neppure il mondo futuro.


Sono legato alla vita e guardo i miei compagni.


Sono taciturni ma nutrono grandi speranze.


In mezzo a loro, scruto l'enorme realtà.


Il presente è immenso, non allontaniamoci.


Non allontaniamoci troppo, teniamoci per mano.


Non sarò il cantore di una donna, di una storia,


non dirò i sospiri all'imbrunire, il paesaggio visto dalla


[ finestra,


non distribuirò narcotici o lettere di suicida,


non fuggirò alle isole né sarò rapito dai serafini.


Il tempo è la mia materia, il tempo presente, gli uomini


[ presenti,


la vita presente.





•••o•••



CONFISSÃO


Não amei bastante meu semelhante,


não catei o verme nem curei a sarna.


Só proferi algumas palavras,


melodiosas, tarde, ao voltar da festa.


Dei sem dar e beijei sem beijo.


(Cego é talvez quem esconde os olhos


embaixo do catre.) E na meia-luz


tesouros fanam-se, os mais excelentes.


Do que restou, como compor um homem


e tudo que ele implica de suave,


de concordâncias vegetais, murmúrios


de riso, entrega, amor e piedade?


Não amei bastante sequer a mim mesmo,


contudo próximo. Não amei ninguém.


Salvo aquele pássaro — vinha azul e doido —


que se esfacelou na asas do avião.



In Claro Enigma

José
Olympio, 1951


© Graña Drummond



CONFESSIONE

Tradução: Vera Lúcia de Oliveira

Non
ho amato abbastanza il mio simile,

non ho cercato il verme né curato la rogna.


Ho solo proferito qualche parola,


melodiosa, tardi, al ritorno della festa.


Ho dato senza dare e baciato senza baci.


(Cieco è forse chi nasconde gli occhi


sotto la branda). E nella mezza-luce


tesori si mutilano, i più eccellenti.


Di quel che è rimasto, come comporre un uomo


e tutto ciò che egli implica di soave,


di concordanze vegetali, sussurri


di riso, dono, amore e pietà?


Non ho amato abbastanza nemmeno me stesso,


seppure prossimo. Non ho amato nessuno.


Salvo quell'uccello - veniva azzurro e folle -


che si è sfracellato sull'ala dell'aereo.

LIQUIDAÇÃO


A casa foi vendida com todas as lembranças


todos os móveis todos os pesadelos


todos os pecados cometidos ou em via de cometer


a casa foi vendida com seu bater de portas


com seu vento encanado sua vista do mundo


seus imponderáveis


por vinte, vinte contos.




In Boitempo


José Olympio, 1968


© Graña Drummond



LIQUIDAZIONE

Tradução: Antonio Tabucchi



La casa è stata venduta con tutti i ricordi

tutti i mobili tutti gli incubi


tutti i peccati commessi o in procinto di essere


[ commessi


la casa è stata venduta col suo sbattere di porte


col suo vento incanalato la sua vista sul mondo


i suoi imponderabili


per venti, venti soldi.





•••o•••



OS MORTOS

Na
ambígua intimidade


que nos concedem


podemos andar nus


diante de seus retratos.


Não reprovam nem sorriem


como se neles a nudez fosse maior.



In Lição de Coisas

José
Olympio, 1962


© Graña Drummond




I MORTI

Tradução: Antonio Tabucchi



Nell'ambigua intimità

che ci concedono


possiamo camminare nudi


davanti ai loro ritratti.


Non hanno riprovazione né sorriso


come se in essi la nudità fosse maggiore.





Falta um disco


Amor,

estou triste porque


sou o único brasileiro vivo


que nunca viu um disco voador.


Na minha rua todos viram


e falaram com seus tripulantes


na língua misturada de carioca


e de sinais verdes luminescentes


que qualquer um entende, pois não?


Entraram a bordo (convidados)


voaram por aí


por ali, por além


sem necessidade de passaporte


e certidão negativa de IR,


sem dólares, amor, sem dólares.


Voltaram cheios de notícias


e de superioridade.


Olham-me com desprezo benévolo.


Sou o pária,


aquele que vê apenas caminhão


cartaz de cinema, buraco na rua


& outras evidências pedestres.


Um amigo que eu tenho


todas as semanas vai ver o seu disco


na praia de Itaipu.


Este não diz nada para mim,


de boca, mas o jeito,


os olhos! contam de prodígios


tornados simples de tão semanais


apenas secretos para quem não é


capaz de ouvir e de entender um disco.


Por que a mim, somente a mim


recusa-se o OVNI?


Talvez para que a sigla


de todo não se perca, pois enfim


nada existe de mais identificado


do que um disco voador hoje presente


em São Paulo, Bahia


Barra da Tijuca e Barra Mansa.


(Os pastores desta aldeia


já me fazem zombaria


pois procuro, em vão procuro


noite e dia


o zumbido, a forma, a cor


de um só disco voador.)


Bem sei que em toda parte


eles circulam: nas praias


no infinito céu hoje finito


até no sítio de um outro amigo em Teresópolis.


Bem sei e sofro


com a falta de confiança neste poeta


que muita coisa viu extraterrena


em sonhos e acordado


viu sereias, dragões


o Príncipe das Trevas


a aurora boreal encarnada em mulher


os sete arcanjos de Congonhas da Luz


e doces almas do outro mundo em procissão.


Mas o disco, o disco?


Ele me foge e ri


de minha busca.


Um passou bem perto (contam)


quase a me roçar. Não viu? Não vi.


Dele desceu (parece)


um sujeitinho furta-cor gentil


puxou-me pelo braço: Vamos (ou: plnx),


talvez...?


Isso me garantem meus vizinhos


e eu, chamado não chamado


insensível e cego sem ouvidos


deixei passar a minha vez.


Amor, estou tristinho, estou tristonho


por ser o só


que nunca viu um disco voador


hoje comum na Rua do Ouvidor.


Liberte


Paul Éluard

Sur mes cahiers d'écolier

Sur mon pupitre et les arbres


Sur le sable sur la neige


J'écris ton nom


Sur toutes les pages lues


Sur toutes les pages blanches


Pierre sang papier ou cendre


J'écris ton nom


Sur les images dorées


Sur les armes des guerriers


Sur la couronne des rois


J'écris ton nom


Sur la jungle et le désert


Sur les nids sur les genêts


Sur l'écho de mon enfance


J'écris ton nom


Sur les merveilles des nuits


Sur le pain blanc des journées


Sur les saisons fiancées


J'écris ton nom


Sur tous mes chiffons d'azur


Sur l'étang soleil moisi


Sur le lac lune vivante


J'écris ton nom


Sur les champs sur l'horizon


Sur les ailes des oiseaux


Et sur le moulin des ombres


J'écris ton nom


Sur chaque bouffée d'aurore


Sur la mer sur les bateaux


Sur la montagne démente


J'écris ton nom


Sur la mousse des nuages


Sur les sueurs de l'orage


Sur la pluie épaisse et fade


J'écris ton nom


Sur les formes scintillantes


Sur les cloches des couleurs


Sur la vérité physique


J'écris ton nom


Sur les sentiers éveillés


Sur les routes déployées


Sur les places qui débordent


J'écris ton nom


Sur la lampe qui s'allume


Sur la lampe qui s'éteint


Sur mes maisons réunies


J'écris ton nom


Sur le fruit coupé en deux


Du miroir et de ma chambre


Sur mon lit coquille vide


J'écris ton nom


Sur mon chien gourmand et tendre


Sur ses oreilles dressées


Sur sa patte maladroite


J'écris ton nom


Sur le tremplin de ma porte


Sur les objets familiers


Sur le flot du feu béni


J'écris ton nom


Sur toute chair accordée


Sur le front de mes amis


Sur chaque main qui se tend


J'écris ton nom


Sur la vitre des surprises


Sur les lèvres attentives


Bien au-dessus du silence


J'écris ton nom


Sur mes refuges détruits


Sur mes phares écroulés


Sur les murs de mon ennui


J'écris ton nom


Sur l'absence sans désir


Sur la solitude nue


Sur les marches de la mort


J'écris ton nom


Sur la santé revenue


Sur le risque disparu


Sur l'espoir sans souvenir


J'écris ton nom


Et par le pouvoir d'un mot


Je recommence ma vie


Je suis né pour te connaître


Pour te nommer


Liberté.


Paul Éluard




Liberdade



Carlos Drummond de Andrade e

Manuel Bandeira

Nos meus cadernos de escola

Nesta carteira nas árvores


Nas areias e na neve


Escrevo teu nome


Em toda página lida


Em toda página branca


Pedra sangue papel cinza


Escrevo teu nome


Nas imagens redouradas


Na armadura dos guerreiros


E na coroa dos reis


Escrevo teu nome


Nas jungles e no deserto


Nos ninhos e nas giestas


No céu da minha infância


Escrevo teu nome


Nas maravilhas das noites


No pão branco da alvorada


Nas estações enlaçadas


Escrevo teu nome


Nos meus farrapos de azul


No tanque sol que mofou


No lago lua vivendo


Escrevo teu nome


Nas campinas do horizonte


Nas asas dos passarinhos


E no moinho das sombras


Escrevo teu nome


Em cada sopro de aurora


Na água do mar nos navios


Na serrania demente


Escrevo teu nome


Até na espuma das nuvens


No suor das tempestades


Na chuva insípida e espessa


Escrevo teu nome


Nas formas resplandecentes


Nos sinos das sete cores


E na física verdade


Escrevo teu nome


Nas veredas acordadas


E nos caminhos abertos


Nas praças que regurgitam


Escrevo teu nome


Na lâmpada que se acende


Na lâmpada que se apaga


Em minhas casas reunidas


Escrevo teu nome


No fruto partido em dois


de meu espelho e meu quarto


Na cama concha vazia


Escrevo teu nome


Em meu cão guloso e meigo


Em suas orelhas fitas


Em sua pata canhestra


Escrevo teu nome


No trampolim desta porta


Nos objetos familiares


Na língua do fogo puro


Escrevo teu nome


Em toda carne possuída


Na fronte de meus amigos


Em cada mão que se estende


Escrevo teu nome


Na vidraça das surpresas


Nos lábios que estão atentos


Bem acima do silêncio


Escrevo teu nome


Em meus refúgios destruídos


Em meus faróis desabados


Nas paredes do meu tédio


Escrevo teu nome


Na ausência sem mais desejos


Na solidão despojada


E nas escadas da morte


Escrevo teu nome


Na saúde recobrada


No perigo dissipado


Na esperança sem memórias


Escrevo teu nome


E ao poder de uma palavra


Recomeço minha vida


Nasci pra te conhecer


E te chamar


Liberdade



Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira



Áporo



Um inseto cava

cava sem alarme


perfurando a terra


sem achar escape.


Que fazer, exausto,


em país bloqueado,


enlace de noite


raiz e minério?


Eis que o labirinto


(oh razão, mistério)


presto se desata:


em verde, sozinha,


antieuclidiana,


uma orquídea forma-se.



Nosso tempo


(trecho)

V

Escuta a hora formidável do almoço


na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.


As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas
[ vitaminosas.


Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!


Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,


olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.


Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é


[ tempo de comida,


mais tarde será o de amor.


Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios,


[ forma indecisa, evoluem.


O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.


Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro.


Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,


vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,


toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.


Escuta a hora espandongada da volta.


Homem depois de homem, mulher, criança, homem,


roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,


homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,


Imaginam esperar qualquer coisa,


e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,


últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,


já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade,


[ imaginam.


Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras,


[ apelo ao cassino, passeio na praia,


o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,


com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,


escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,


errar em objetos remotos e, sob eles soterrado sem dor,


confiar-se ao que-bem-me-importa


do sono.


Escuta o horrível emprego do dia


em todos os países de fala humana,


a falsificação das palavras pingando nos jornais,


o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo


[ com flores,


os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,


a constelação das formigas e usurários,


a má poesia, o mau romance,


os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,


o homem feio, de mortal feiúra,


passeando de bote


num sinistro crepúsculo de sábado.

Drummond de bolso

CERÂMICA


Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.

Sem uso,

ela nos espia do aparador.

In José & Outros

José
Olympio, 1967



BAHIA

É preciso fazer um poema sobre a Bahia...

Mas eu nunca fui lá.




In Alguma Poesia

Edições
Pindorama, 1930


COTA ZERO

Stop.

A vida parou


ou foi o automóvel?


In Alguma Poesia

Edições
Pindorama, 1930




[CEMITÉRIO] DE BOLSO

Do lado esquerdo carrego meus mortos.

Por isso caminho um pouco de banda.


In Fazendeiro do Ar

José
Olympio, 1954



ENIGMA


16/06/1973


Faço e ninguém me responde


esta perguntinha à-toa:


Como pode o peixe vivo


morrer dentro da Lagoa?



In Amar Se Aprende Amando

Record
, 1985


Caso do vestido

Nossa mãe, o que é aquele

vestido, naquele prego?


Minhas filhas, é o vestido


de uma dona que passou.


Passou quando, nossa mãe?


Era nossa conhecida?


Minhas filhas, boca presa.


Vosso pai evém chegando.


Nossa mãe, esse vestido


tanta renda, esse segredo!


Minhas filhas, escutai


palavras de minha boca.


Era uma dona de longe,


vosso pai enamorou-se.


E ficou tão transtornado,


se perdeu tanto de nós,


se afastou de toda vida,


se fechou, se devorou.


Chorou no prato de carne,


bebeu, gritou, me bateu,


me deixou com vosso berço,


foi para a dona de longe,


mas a dona não ligou.


Em vão o pai implorou,


dava apólice, fazenda,


dava carro, dava ouro,


beberia seu sobejo,


lamberia seu sapato.


Mas a dona nem ligou.


Então vosso pai, irado,


me pediu que lhe pedisse,


a essa dona tão perversa,


que tivesse paciência


e fosse dormir com ele...


Nossa mãe, por que chorais?


Nosso lenço vos cedemos.


Minhas filhas, vosso pai


chega ao pátio. Disfarcemos.


Nossa mãe, não escutamos


pisar de pé no degrau.


Minhas filhas, procurei


aquela mulher do demo.


E lhe roguei que aplacasse


de meu marido a vontade.


Eu não amo teu marido,


me falou ela se rindo.


Mas posso ficar com ele


se a senhora fizer gosto,


só para lhe satisfazer,


não por mim, não quero homem.


Olhei para vosso pai,


os olhos dele pediam.


Olhei para a dona ruim,


os olhos dela gozavam.


O seu vestido de renda,


de colo mui devassado,


mais mostrava que escondia


as partes da pecadora.


Eu fiz meu pelo-sinal,


me curvei... disse que sim.


Saí pensando na morte,


mas a morte não chegava.


Andei pelas cinco ruas,


passei ponte, passei rio,


visitei vossos parentes,


não comia, não falava,


tive uma febre terçã,


mas a morte não chegava.


Fiquei fora de perigo,


fiquei de cabeça branca,


perdi meus dentes, meus olhos,


costurei, lavei, fiz doce,


minhas mãos se escalavraram,


meus anéis se dispersaram,


minha corrente de ouro


pagou conta de farmácia.


Vosso pai sumiu no mundo.


O mundo é grande e pequeno.


Um dia a dona soberba


me aparece já sem nada,


pobre, desfeita, mofina,


com sua trouxa na mão.


Dona, me disse baixinho,


não te dou vosso marido,


que não sei onde ele anda.


Mas te dou este vestido,


última peça de luxo


que guardei como lembrança


daquele dia de cobra,


da maior humilhação.


Eu não tinha amor por ele,


ao depois amor pegou.


Mas então ele enjoado


confessou que só gostava


de mim como eu era dantes.


Me joguei a suas plantas,


fiz toda sorte de dengo,


no chão rocei minha cara,


me puxei pelos cabelos,


me lancei na correnteza,


me cortei de canivete,


me atirei no sumidouro,


bebi fel e gasolina,


rezei duzentas novenas,


dona, de nada valeu:


vosso marido sumiu.


Aqui trago minha roupa


que recorda meu malfeito


de ofender dona casada


pisando no seu orgulho.


Recebei esse vestido


e me dai vosso perdão.


Olhei para a cara dela,


quede os olhos cintilantes?


quede graça de sorriso,


quede colo de camélia?


quede aquela cinturinha


delgada como jeitosa?


quede pezinhos calçados


com sandálias de cetim?


Olhei muito para ela,


boca não disse palavra.


Peguei o vestido, pus


nesse prego da parede.


Ela se foi de mansinho


e já na ponta da estrada


vosso pai aparecia.


Olhou para mim em silêncio,


mal reparou no vestido


e disse apenas: Mulher,


põe mais um prato na mesa.


Eu fiz, ele se assentou,


comeu, limpou o suor,


era sempre o mesmo homem,


comia meio de lado


e nem estava mais velho.


O barulho da comida


na boca, me acalentava,


me dava uma grande paz,


um sentimento esquisito


de que tudo foi um sonho,


vestido não há... nem nada.


Minhas filhas, eis que ouço


vosso pai subindo a escada.


Cuidado

A porta cerrada

não abras.


Pode ser que encontres


o que não buscavas


nem esperavas.


Na escuridão


pode ser que esbarres


no casal em pé


tentando se amar


apressadamente.


Pode ser que a vela


que trazes na mão


te revele, trêmula,


tua escrava nova,


teu dono-marido.


Descuidosa, a porta


apenas cerrada


pode te contar


conto que não queres


saber.


Herói

Regressa da Europa Doutor Oliveira.

É dia de festa na cidade inteira.


Doutor Oliveira fez longa viagem.


Maior, mais brilhante ficou sua imagem.


Viajou de cavalo, de trem, de navio.


Foi bravo, foi forte, venceu desafio.


Falou língua estranja, que não percebemos.


Ergueu nosso nome a pontos extremos.


Conversou doutores de barbas sorbônicas


e viu catedrais, jóias arquitetônicas.


Papou iguarias jamais igualadas


nas jantas mais finas: consommés, saladas,


ovas de esturjão, e pratos mil flambantes,


que aqui falecemos sem conhecer antes.


Praticou mulheres das mais perigosas,


ofertou-lhes mimos, madrigais e rosas.


Nenhuma o prendeu entre grades de seda.


Volta o nosso amigo, livre, de alma leda.


Tudo há de contar-nos à luz do lampião,


para nosso pasmo e nossa ilustração.


Depressa, cavalos e arreios de prata,


que vai esperá-lo o povo bom, a nata.


Da cidade às portas, como triunfador,


eis chega Oliveira, preclaro doutor.


Ginetes aos centos correm a saudá-lo.


Foguetes, discursos e até o abalo


de tiros festivos no azul — eta nós!


dados por Janjão e por Tatau Queirós.


Pois quem destes matos foi até Paris


honrou nossa terra, deu-lhe mais verniz.


E assim, ao apear, desembarca na História


Doutor Oliveira, para nossa glória.

Adeus a Sete Quedas

Sete damas por mim passaram,

E todas sete me beijaram.


Alphonsus de Guimaraens

Aqui outrora retumbaram hinos.

Raimundo Correia


Sete quedas por mim passaram,

e todas sete se esvaíram.


Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele


a memória dos índios, pulverizada,


já não desperta o mínimo arrepio.


Aos mortos espanhóis, aos mortos bandeirantes,


aos apagados fogos


de Ciudad Real de Guaira vão juntar-se


os sete fantasmas das águas assassinadas


por mão do homem, dono do planeta.


Aqui outrora retumbaram vozes


da natureza imaginosa, fértil


em teatrais encenações de sonhos


aos homens ofertadas sem contrato.


Uma beleza-em-si, fantástico desenho


corporizado em cachões e bulcões de aéreo contorno


mostrava-se, despia-se, doava-se


em livre coito à humana vista extasiada.


Toda a arquitetura, toda a engenharia


de remotos egípcios e assírios


em vão ousaria criar tal monumento.


E desfaz-se


por ingrata intervenção de tecnocratas.


Aqui sete visões, sete esculturas


de líquido perfil


dissolvem-se entre cálculos computadorizados


de um país que vai deixando de ser humano


para tornar-se empresa gélida, mais nada.


Faz-se do movimento uma represa,


da agitação faz-se um silêncio


empresarial, de hidrelétrico projeto.


Vamos oferecer todo o conforto


que luz e força tarifadas geram


à custa de outro bem que não tem preço


nem resgate, empobrecendo a vida


na feroz ilusão de enriquecê-la.


Sete boiadas de água, sete touros brancos,


de bilhões de touros brancos integrados,


afundam-se em lagoa, e no vazio


que forma alguma ocupará, que resta


senão da natureza a dor sem gesto,


a calada censura


e a maldição que o tempo irá trazendo?


Vinde povos estranhos, vinde irmãos


brasileiros de todos os semblantes,


vinde ver e guardar


não mais a obra de arte natural


hoje cartão-postal a cores, melancólico,


mas seu espectro ainda rorejante


de irisadas pérolas de espuma e raiva,


passando, circunvoando,


entre pontes pênseis destruídas


e o inútil pranto das coisas,


sem acordar nenhum remorso,


nenhuma culpa ardente e confessada.


(“Assumimos a responsabilidade!


Estamos construindo o Brasil grande!”)


E patati patati patatá...


Sete quedas por nós passaram,


e não soubemos, ah, não soubemos amá-las,


e todas sete foram mortas,


e todas sete somem no ar,


sete fantasmas, sete crimes


dos vivos golpeando a vida


que nunca mais renascerá.

Ainda que mal

Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;

ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;

ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
me salvo e me dano: amor.



Drummond saúda Pessoa


SONETILHO DO FALSO FERNANDO PESSOA

Onde nasci, morri.

Onde morri, existo.


E das peles que visto

muitas há que não vi.

Sem mim como sem ti

posso durar. Desisto

de tudo quanto é misto

e que odiei ou senti.

Nem Fausto nem Mefisto,

à deusa que se ri

deste nosso oaristo,

eis-me a dizer: assisto

além, nenhum, aqui,

mas não sou eu, nem isto.


Carlos Drummond de Andrade

In Claro Enigma


José Olympio, 1951


© Graña Drummond



AS IDENTIDADES DO POETA

(trecho)

(...)

Fernando Pessoa caminha sozinho
pelas ruas da Baixa,
pela rotina do escritório
mercantil hostil
ou vai, dialogante, em companhia
de tantos si-mesmos
que mal pressentimos
na seca solitude
de seu sobretudo?
Afinal, quem é quem, na maranha

de fingimento que mal finge
e vai tecendo com fios de astúcia
personas mil na vaga estrutura
de um frágil Pessoa?

(...)


Carlos Drummond de Andrade

In Farewell

Record, 1996

© Graña Drummond


O enterrado vivo

É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.
É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.
É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.
É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.
Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.



Cartola, no moinho do mundo

Você vai pela rua, distraído ou preocupado, não importa. Vai a determinado lugar para fazer qualquer coisa que está escrita em sua agenda. Nem é preciso que tenha agenda. Você tem um destino qualquer, e a rua é só a passagem entre sua casa e a pessoa que vai procurar. De repente estaca. Estaca e fica ouvindo.
Eu fiz o ninho.

Te ensinei o bom caminho.
Mas quando a mulher não tem brio,
é malhar em ferro frio.

Aí você fica parado, escutando até o fim o som que vem da loja de discos, onde alguém se lembrou de reviver o velho samba de Cartola; Na Floresta (música de Sílvio Caldas).
Esse Cartola! Desta vez, está desiludido e zangado, mas em geral a atitude dele é de franco romantismo, e tudo se resume num título: Sei Sentir. Cartola sabe sentir com a suavidade dos que amam pela vocação de amar, e se renovam amando. Assim, quando ele nos anuncia: “Tenho um novo amor”, é como se desse a senha pela renovação geral da vida, a germinação de outras flores no eterno jardim. O sol nascerá, com a garantia de Cartola. E com o sol, a incessante primavera.


A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira (e não Agenor, como dizem os descuidados) é patente quer na composição, quer na execução. Como bem me observou Jota Efegê, seu padrinho de casamento, trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois convivem civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza.


Em Tempos Idos, o divino Cartola, como o qualificou Lúcio Rangel, faz o histórico poético da evolução do samba, que se processou, aliás, com a sua participação eficiente:


Com a mesma roupagem

que saiu daqui


exibiu-se para a Duquesa de Kent


no Itamaraty.
Pode-se dizer que esta foi também a caminhada de Cartola. Nascido no Catete, sua grande experiência humana se desenvolveu no Morro da Mangueira, mas hoje ele é aceito como valor cultural brasileiro, representativo do que há de melhor e mais autêntico na música popular. Ao gravar o seu samba Quem Me Vê Sorrir (com Carlos Cachaça), o maestro Leopold Stockowski não lhe fez nenhum favor: reconheceu, apenas, o que há de inventividade musical nas camadas mais humildes de nossa população. Coisa que contagiou a ilustre Duquesa.


* * *


Mas então eu fiquei parado, ouvindo a filosofia céptica do Mestre Cartola, na voz de Sílvio Caldas. Já não me lembrava o compromisso que tinha de cumprir, que compromisso? Na floresta, o homem fizera um ninho de amor, e a mulher não soubera corresponder à sua dedicação. Inutilmente ele a amara e orientara, mulher sem brio não tem jeito não. Cartola devia estar muito ferido para dizer coisas tão amargas. Hoje não está. Forma um par feliz com Zica, e às vezes a televisão vai até a casa deles, mostra o casal tranqüilo, Cartola discorrendo com modéstia e sabedoria sobre coisas da vida. “O mundo é um moinho...” O moleiro não é ele, Angenor, nem eu, nem qualquer um de nós, igualmente moídos no eterno girar da roda, trigo ou milho que se deixa pulverizar. Alguns, como Cartola, são trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. A gente fica sentindo e pensamenteando sempre o gosto dessa comida. O nobre, o simples, não direi o divino, mas o humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma delicada. O som calou-se, e “fui à vida”, como ele gosta de dizer, isto é, à obrigação daquele dia. Mas levava uma companhia, uma amizade de espírito, o jeito de Cartola botar em lirismo a sua vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da poesia, essa iluminação.










Drummond e a indesejada

MOINHO

A mó da morte mói

o milho teu dourado


e deixa no farelo


um ai deteriorado.


Mói a mó, mói a morte


em seu moer parado


o que era trigo eterno


e nem sequer semeado.


Da morte a mó que mói


não mói todo o legado.


Fica, moendo a mó,


o vento do passado.

COMO ENCARAR A MORTE

De longe
Quatro bem-te-vis levam nos bicos
o batel de ouro e lápis-lazúli,

e pousando-o sobre uma acácia
cantam o canto costumeiro.
O barco lá fica banhado
de brisa aveludada, açúcar,
e os bem-te-vis, já esquecidos
de perpassar, dormem no espaço.


A meia distância

Claridade
infusa na sombra,
treva implícita na claridade?

Quem ousa dizer o que viu,
se não viu a não ser em sonho?

Mas insones tornamos a vê-lo
e um vago arrepio vara
a mais íntima pele do homem.

A superfície jaz tranqüila.


De lado

Sente
-se já, não a figura,
passos na areia, pés incertos,
avançado e deixando ver
um certo código de sandálias.

Salvo rosto ou contorno explícito,
como saber que nos procura
o viajante sem identidade?

Algum ponto em nós se recusa.


De dentro

Agora
não se esconde mais.

Apresenta-se, corpo inteiro,

se merece nome de corpo

o gás de um estado indefinível.

Seu interior mostra-se aberto.

Promete riquezas, prêmios,

mas eis que falta curiosidade,

e todo ferrão de desejo.


Sem vista

Singular
, sentir não sentindo


ou sentimento inexpresso


de si mesmo, em vaso coberto


de resina e lótus e sons.


Nem viajar nem estar quedo


em lugar algum do mundo, só


o não saber que afinal se sabe


e, mais sabido, mais se ignora.









Resíduo

De tudo ficou um pouco

Do meu medo. Do teu asco.


Dos gritos gagos. Da rosa


ficou um pouco.


Ficou um pouco de luz


captada no chapéu.


Nos olhos do rufião


de ternura ficou um pouco


(muito pouco).


Pouco ficou deste pó


de que teu branco sapato


se cobriu. Ficaram poucas


roupas, poucos véus rotos


pouco, pouco, muito pouco.


Mas de tudo fica um pouco.


Da ponte bombardeada,


de duas folhas de grama,


do maço


― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.


Pois de tudo fica um pouco.


Fica um pouco de teu queixo


no queixo de tua filha.


De teu áspero silêncio


um pouco ficou, um pouco


nos muros zangados,


nas folhas, mudas, que sobem.


Ficou um pouco de tudo


no pires de porcelana,


dragão partido, flor branca,


ficou um pouco


de ruga na vossa testa,


retrato.


Se de tudo fica um pouco,


mas por que não ficaria


um pouco de mim? no trem


que leva ao norte, no barco,


nos anúncios de jornal,


um pouco de mim em Londres,


um pouco de mim algures?


na consoante?


no poço?


Um pouco fica oscilando


na embocadura dos rios


e os peixes não o evitam,


um pouco: não está nos livros.


De tudo fica um pouco.


Não muito: de uma torneira


pinga esta gota absurda,


meio sal e meio álcool,


salta esta perna de rã,


este vidro de relógio


partido em mil esperanças,


este pescoço de cisne,


este segredo infantil...


De tudo ficou um pouco:


de mim; de ti; de Abelardo.


Cabelo na minha manga,


de tudo ficou um pouco;


vento nas orelhas minhas,


simplório arroto, gemido


de víscera inconformada,


e minúsculos artefatos:


campânula, alvéolo, cápsula


de revólver... de aspirina.


De tudo ficou um pouco.


E de tudo fica um pouco.


Oh abre os vidros de loção


e abafa


o insuportável mau cheiro da memória.


Mas de tudo, terrível, fica um pouco,


e sob as ondas ritmadas


e sob as nuvens e os ventos


e sob as pontes e sob os túneis


e sob as labaredas e sob o sarcasmo


e sob a gosma e sob o vômito


e sob o soluço, o cárcere, o esquecido


e sob os espetáculos e sob a morte escarlate


e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes


e sob tu mesmo e sob teus pés já duros


e sob os gonzos da família e da classe,


fica sempre um pouco de tudo.


Às vezes um botão. Às vezes um rato.

A máquina do mundo

E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,


e no fecho da tarde um sino rouco


se misturasse ao som de meus sapatos


que era pausado e seco; e aves pairassem


no céu de chumbo, e suas formas pretas


lentamente se fossem diluindo


na escuridão maior, vinda dos montes


e de meu próprio ser desenganado,


a máquina do mundo se entreabriu


para quem de a romper já se esquivava


e só de o ter pensado se carpia.


Abriu-se majestosa e circunspecta,


sem emitir um som que fosse impuro


nem um clarão maior que o tolerável


pelas pupilas gastas na inspeção


contínua e dolorosa do deserto,


e pela mente exausta de mentar


toda uma realidade que transcende


a própria imagem sua debuxada


no rosto do mistério, nos abismos.


Abriu-se em calma pura, e convidando


quantos sentidos e intuições restavam


a quem de os ter usado os já perdera


e nem desejaria recobrá-los,


se em vão e para sempre repetimos


os mesmos sem roteiro tristes périplos,


convidando-os a todos, em coorte,


a se aplicarem sobre o pasto inédito


da natureza mítica das coisas,


assim me disse, embora voz alguma


ou sopro ou eco o simples percussão


atestasse que alguém, sobre a montanha,


a outro alguém, noturno e miserável,


em colóquio se estava dirigindo:


"O que procuraste em ti ou fora de


teu ser restrito e nunca se mostrou,


mesmo afetando dar-se ou se rendendo,


e a cada instante mais se retraindo,


olha, repara, ausculta: essa riqueza


sobrante a toda pérola, essa ciência


sublime e formidável, mas hermética,


essa total explicação da vida,


esse nexo primeiro e singular,


que nem concebes mais, pois tão esquivo


se revelou ante a pesquisa ardente


em que te consumiste... vê, contempla,


abre teu peito para agasalhá-lo."


As mais soberbas pontes e edifícios,


o que nas oficinas se elabora,


o que pensado foi e logo atinge


distância superior ao pensamento,


os recursos da terra dominados,


e as paixões e os impulsos e os tormentos


e tudo que define o ser terrestre


ou se prolonga até nos animais


e chega às plantas para se embeber


no sono rancoroso dos minérios,


dá volta ao mundo e torna a se engolfar


na estranha ordem geométrica de tudo,


e o absurdo original e seus enigmas,


suas verdades altas mais que tantos


monumentos erguidos à verdade;


e a memória dos deuses, e o solene


sentimento de morte, que floresce


no caule da existência mais gloriosa,


tudo se apresentou nesse relance


e me chamou para seu reino augusto,


afinal submetido à vista humana.


Mas, como eu relutasse em responder


a tal apelo assim maravilhoso,


pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,


a esperança mais mínima — esse anelo


de ver desvanecida a treva espessa


que entre os raios do sol inda se filtra;


como defuntas crenças convocadas


presto e fremente não se produzissem


a de novo tingir a neutra face


que vou pelos caminhos demonstrando,


e como se outro ser, não mais aquele


habitante de mim há tantos anos,


passasse a comandar minha vontade


que, já de si volúvel, se cerrava


semelhante a essas flores reticentes


em si mesmas abertas e fechadas;


como se um dom tardio já não fora


apetecível, antes despiciendo,


baixei os olhos, incurioso, lasso,


desdenhando colher a coisa oferta


que se abria gratuita a meu engenho.


A treva mais estrita já pousara


sobre a estrada de Minas, pedregosa,


e a máquina do mundo, repelida,


se foi miudamente recompondo,


enquanto eu, avaliando o que perdera,


seguia vagaroso, de mão pensas.


O ultimo dia do ano

PASSAGEM DO ANO


O último dia do ano


não é o último dia do tempo.


Outros dias virão


e novas coxas e ventres te comunicarão o


[ calor da vida.


Beijarás bocas, rasgarás papéis,


farás viagens e tantas celebrações


de aniversário, formatura, promoção, glória,


[ doce morte com sinfonia e coral,


que o tempo ficará repleto e não ouvirás o


[ clamor,


os irreparáveis uivos


do lobo, na solidão.


O último dia do tempo


não é o último dia de tudo.


Fica sempre uma franja de vida


onde se sentam dois homens.


Um homem e seu contrário,


uma mulher e seu pé,


um corpo e sua memória,


um olho e seu brilho,


uma voz e seu eco,


e quem sabe até se Deus...


Recebe com simplicidade este presente do


[ acaso.


Mereceste viver mais um ano.


Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos


[ séculos.


Teu pai morreu, teu avô também.


Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras


[ espreitam a morte,


mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,


e de copo na mão


esperas amanhecer.


O recurso de se embriagar.


O recurso da dança e do grito,


o recurso da bola colorida,


o recurso de Kant e da poesia,


todos eles... e nenhum resolve.


Surge a manhã de um novo ano.


As coisas estão limpas, ordenadas.


O corpo gasto renova-se em espuma.


Todos os sentidos alerta funcionam.


A boca está comendo vida.


A boca está entupida de vida.


A vida escorre da boca,


lambuza as mãos, a calçada.


A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.









Carlos Drummond de Andrade

In Reunião — 10 Livros de Poesia

Ed. José Olympio, Rio de Janeiro, 1971